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Mas, é apenas um sonho?

Nós temos o prazer de difundir o texto da intervenção prevista para a abertura do XII° Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que deveria acontecer em Buenos Aires em 2020 com o tema “O sonho. Sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano”. Em direção à 2022 e ao próximo Congresso em Paris, leiamo-lo hoje! – A Redação.

A Interpretação dos sonhos é um livro que há um pouco mais de cento e vinte anos. É também o nome de um campo aberto por Freud, de uma empreitada à qual muitos se apressaram em participar. No início, este livro foi o único manual de psicanálise aberto às contribuições de cada um. A um dado momento, Freud fixou o estado atual do texto e desejou não mais remanejá-lo. Certas problemáticas que encontramos posteriormente, notadamente a propósito do além do princípio de prazer, não estão mais presentes. Também, um capítulo redigido por Otto Rank que tivera sido incluído no volume por um momento, foi suprimido. Em uma carta à Samuel Jankélévitch de 1911, Freud considera que a obra não é traduzível em francês1.

Sonhador e intérprete

Freud se questionava se os sonhos poderiam ser comunicados. Em 1930, ele escrevia em uma nota de A Interpretação dos sonhos: “em quase nenhum exemplo apresentei a interpretação completa de meus próprios sonhos, conforme me é conhecida”2.

Devemos entender que o que Freud temia era que o desejo do sonhador, do sujeito Freud, fosse apagado. Ele pôde mesmo propor aos tradutores de tomarem seus próprios sonhos no lugar dos apresentados por ele, Freud3, o que fez Abraham A. Brill nos Estados Unidos, por exemplo. Sem dúvidas, isto permite esclarecer por que Freud, em suas Novas conferências de introdução à psicanálise, diz que “o sonho não é uma manifestação social, um meio de entendimento. Não compreendemos o que ele quer dizer, e ele próprio não sabe o que é”4.

Silvia Baudini e Fabian Naparstek, na apresentação do XII° Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, sublinham que “Os sonhos não são transparentes!”5. Se Freud faz esse comentário é que, a um certo momento, tornou-se um jogo nos salões de falar dos sonhos, de os interpretar. Um novo laço social havia sido encontrado! Os passos de Freud tomam um outro caminho.

O método de interpretação dos sonhos de Freud passa pela associação livre, que permite o acesso aos “pensamentos latentes do sonho”. O método da associação supõe “de nos preocupar o mínimo possível […] do sonho manifesto6. A interpretação vinda das associações é, de acordo com Freud, apenas uma premissa à interpretação do analista, que formula “o que o paciente não fez que aflorar”. As formulações assim comunicadas ao paciente supõem um trabalho de construção do analista. Freud não teme intervir: nós “interferimos, completamos as insinuações, tiramos inevitáveis conclusões, explicitamos aquilo que o paciente apenas roçou com as associações”7. De fato, para ele, o que parece se acrescentar ao sonho pela via das associações ou por construção, pela leitura dos símbolos em particular, faz parte do sonho. O sonho interpreta, mas também tudo o que virá comentá-lo, modulá-lo, associar-se a ele, interpretá-lo, faz parte – isso pertence ao sonho! Vemos lá que Freud não se situa enquanto psicólogo. Freud, com a Traumdeutung, é o sonhador e o interpreta inseparavelmente.

O buraco que desperta

Se o sonho não visa ser comunicado, é porque ele serve a outra coisa. Freud nota que se o sonho serve ao eu (moi) e ao desejo de dormir, ele satisfaz sobretudo um desejo pulsional sob a forma de uma realização de um desejo alucinado8. Esta satisfação do desejo é vivida como presente. E, para Freud, este desejo pode se formular em uma frase. Assim, o sonho oscila entre imagens, figuração, semblante, mas também enunciado, linguagem. Sobretudo, ele busca uma satisfação bem real.

Lacan quis, primeiramente, reduzir esta satisfação a um efeito de gramática, à forma verbal do realizado, para, mais tarde, reconhecer no sonho a presença do mais-de-gozar. E é precisamente este real pulsional, este gozo mesmo, que corre o risco de provocar o despertar do sonhador. Lacan, em 1975, nos indica que o que Freud designava por esse real pulsional é antes de tudo um buraco na linguagem, no significante, no corporal, aquele da origem do sujeito9.

Não querer se despertar

Como, então, evitar o despertar? Em se dizendo: « mas é apenas um sonho!”.

Isto ressalva a questão do sonho dentro do sonho. Para Freud, qualificar o sonho de sonho, em seu próprio conteúdo, não o desvaloriza, mas procura a separá-lo da realidade: “quando um evento específico é inserido num sonho pelo próprio trabalho do sonho, isso implica a mais firme confirmação da realidade do evento – sua afirmação mais forte. O trabalho do sonho se serve do sonhar como forma de repúdio, confirmando assim a descoberta de que os sonhos são realizações de desejos”10. O sonho dentro do sonho é, então, traço de uma recusa, que marca que ele é uma realização de desejo, e, no fundo, index do real pulsional. É apenas um sonho marca para nós o traço do real do gozo, na medida em que o sujeito o recusa.

Nós encontramos este tema um pouco mais longe no texto: é apenas um sonho visa adormecer uma instância de censura que gostaria de interromper o sonho: “A meu ver, esse juízo crítico desdenhoso, ‘é apenas um sonho’, aparece no sonho quando a censura, que nunca está inteiramente adormecida, sente que foi apanhada desprevenida por um sonho que já se deixou passar.”11 O sonho é desvalorizado para que seja permitido que ele continue sem produzir o despertar.

Lacan parte deste ponto quando se trata de comentar a nota (de Nacht em A psicanálise hoje) “um sonho, afinal, é apenas um sonho”, interrogando “não significa nada que Freud nele tenha reconhecido o desejo?”12. Este comentário equivale, de fato, a não querer se despertar, não querer se despertar diante o encontro do desejo de Freud tão presente no que ele nos transmite sobre o sonho. Pois se Freud reconheceu no sonho um desejo, é o desejo que se manifesta, e o da psicanálise em particular. Freud observava que poucas pessoas podiam decifrar os sonhos como ele.

O trabalho do sonho

Mas é apenas um sonho é uma observação do sujeito, lá onde ele encontra um desejo que não é sujeito, antecipa Lacan nos Escritos13. Isto quer dizer que não é o sujeito quem realiza o trabalho do sonho, mas o próprio sonho. Seu primeiro trabalho é a distorção – tal é a tradução proposta por Lacan do termo Entstellung de Freud. Se os conteúdos são assim, deslocados, mas sobretudo distorcidos, é porque nenhum significante não pode corresponder a um significado, há um deslizamento de um para o outro. Há deslizamento porque no sonho, as articulações entre significante e significado são desfeitas. O sonho nos mostra lalangue em ação. Em outras palavras, o sonho utiliza um aspecto da linguagem, ou seja, este deslizamento do significante para o significado. Para manifestar o quê? Um real que escapa, e de fato, ataca as articulações da significação!

O que se trata verdadeiramente no sonho não é representável porque toca o real. L’Entstellung é, para Freud, apenas o traço deste real a partir do qual ele orienta seu desejo de analista. Lacan também traduziu Entstellung por ex-sistência. O que existe no sonho? Inicialmente são as pulsões. E se as pulsões ex-sistem, de acordo com Lacan, é porque elas são, por excelência, também o que é deslocado. Elas não estão lá onde deveriam estar. Lacan articulou o impossível a escrever, e a saber – com este real pulsional: « É justamente isto o que Freud aponta ao falar do umbigo do sonho […]. De tal maneira que isto designa uma analogia, totalmente análoga ao que você acabou de definir aqui como o real pulsional »14. Lacan emprega o mesmo termo para o desejo no sonho e para as pulsões: Entstellung, deslocamento e ex-sistência. O que não está no seu lugar e só pode se apresentar assim, é o sexual.

Para Freud, a essência do sonho não está nos pensamentos latentes trazidos à luz pela associação livre. O principal é o trabalho do sonho. Trata-se de saber qual é o mecanismo que permite passar do sonho manifesto aos pensamentos latentes, isto é, este trabalho que supõe o efeito da censura que está sempre em ação. Se não houvesse censura, por que então falar de desejo, de repressão, de latência? Se Freud se interessa sobretudo pelo trabalho do sonho, é porque ele encontra nele a marca que atesta uma deformação. A deformação introduzida pela sexualidade é o que assegura sua certeza e é também o que ele procurará em seu Moisés. Ele buscará os rastros de uma história alterada, de um crime, de uma substituição. Para Freud, é com efeito também o vestígio de um assassinato. De Totem e Tabu a Moisés, passando pelo Édipo, a ex-sistência está atrelada à figura impossível do pai morto do gozo.

Os contemporâneos de Freud foram mais seduzidos pela interpretação proporcionada pela associação livre, pelo latente, do que pelo sexual. Adler queria a realização de desejo alimentasse a propensão ao apaziguamento. Já Jung, queria substituir os sonhos de Freud pelos sonhos dos pacientes na Traumdeutung. Eles sonhavam por um sonho tranquilo! Isto foi sem dúvida, um dos motivos que levou Freud a escrever no prefácio da segunda edição: “Eu compreendi que [este livro] era uma parte da minha autoanálise, da minha reação à morte do meu pai, o acontecimento mais importante, a perda mais dolorosa da vida de um homem”15. Freud percorre o caminho indicado por seu desejo. Esse desejo passa pelo trabalho do sonho, como marca da repressão da sexualidade.

Uma falta-a-ser sexuada

Lacan intervém introduzindo um novo termo para apreender essa questão do desejo no sonho. Este termo é o de demanda. Essa demanda obscura está no âmago do sonho, em um aquém do desejo, perto da pulsão. Como Lacan sublinhou mais tarde, antes de querer nos dizer algo, há no sonho, algo da ordem de um isto quer: “quando interpretamos um sonho, o que nos guia, não é certamente o que é que isso quer dizer? nem tampouco o que ele quer dizendo isto? mas, o quê é que, do dizer, isso quer?16.

Com efeito, essa demanda obscura, quase real, quando ela é explícita, torna-se transitiva, e é também o que deve ser ultrapassado para produzir um para-além, um vazio, que lhe ex-siste. É o desejo que ex-siste à demanda. É nisso que, se o sonho também pede sua interpretação, nós não o satisfazemos verdadeiramente, para que o que se satisfaz no sonho venha à tona, e que o inconsciente se interprete.

Lacan precisará de tempo para perceber que o vazio, no sonho, está ocupado pelo objeto causa do desejo. Há demanda no Wunsch de Freud, mas como sublinha Lacan em 1977: “O sonho difere, diferencia-se, para se diferenciar de maneira não manifesta, certamente, e bastante enigmática – basta ver o trabalho que Freud se dá – o que deve ser chamado de uma demanda e um desejo. O sonho pede coisas, mas novamente aqui, a língua alemã não ajuda Freud, porque ele não encontra outra forma de designá-la senão chamá-la de um pedido, Wunsch, que é basicamente algo entre a demanda e o desejo.”17.

Nessa falta, nesse vazio para-além, para Lacan, trata-se do ser, e não do ter. O desejo não está no campo do ter, ele toca o ser. O que é desejo não é sujeito, mas presença da falta-a-ser no sonho. Apenas, é uma falta-a-ser sexuada, de um sexuado que fala. O sonhador é um falasser. O sexo, no sonho como em alhures, é um dizer. Lacan é o único a entender que o dizer de Freud é: Não há relação sexual. E então, para isso e por meio disso, há o sonho.

A falha do sonhador mascarado

Lacan aponta “que o sonho, segundo Freud, é essencialmente egoísta, que, em tudo o que o sonho nos apresenta, temos que reconhecer a instância do Ich, sob uma máscara. Mas ao mesmo tempo, é na medida em que ele não se articula como Ich, que ele se esconde aí, que ele se presentifica”18. E é justamente por isso que esse eu [Je] ausente é representado no sonho por uma multidão, aquela de todos os pequenos outros que habitam o sonho e que são também o sonhador, mas nunca “eu” [Je]. O desejante é assim condenado a se dispersar e a aparecer sob uma máscara social.

Borges afirma: “as máscaras sempre me assustaram”19 – ela tem isto em comum com a minha neta. Quando criança, temos medo do que está por trás da máscara do Outro do adulto. Adulto, podemos, como Borges, pensar em arrancar a máscara: “Tenho medo de arrancar essa máscara porque tenho medo de ver meu verdadeiro rosto, o qual imagino horrível. Por trás dela, pode haver a lepra, o mal ou algo ainda mais assustador do que qualquer coisa que eu pudesse imaginar”. O despertar será sempre uma tentativa de extrair o sujeito dessa multidão sonhada e sonhante para que sonha para que o eu [Je] apareça no despertar. Mas o Eu [Je] não quer saber o que está por trás da multidão e de suas máscaras. Trata-se de um falso despertar. Hoje somos aconselhados a permanecer mascarados!

Lacan observa que o desejo de dormir é cúmplice do desejo do sonho, evitando a realidade que nós encontramos ao despertar. Mas ele é cúmplice até um certo ponto. Ele não quer que o desejante seja revelado, isto é, o pequeno a, o sujeito enquanto ele é – não eu [je], mas ele [il] – um objeto a. A multidão também serve para camuflar nosso ser de a.

É o que diz o sonho da borboleta: “Zhuangzi sonhou que era uma borboleta, esvoaçante, feliz com seu destino, sem saber que era Zhuangzi. De repente, ele acordou e percebeu que era Zhuangzi. Já não sabia se era Zhuangzi que acabava de sonhar que era uma borboleta ou se era uma borboleta que sonhava que era Zhuangzi. A diferença entre Zhuangzi e uma borboleta é chamada de transformação dos seres”20. Assim, no mesmo capítulo intitulado “Da Unificação”, Tchouang-Tseu afirma: “Não sabemos que sonhamos quando sonhamos e que interpretamos nossos sonhos enquanto sonhamos. […] É apenas quando acordamos que nós perceberemos que estamos fazendo um grande sonho. O [sujeito] que pensa estar acordado pensa que pode distinguir um príncipe de um pastor. Que pretensão! Confúcio e você [são] sonhos, e eu, que te digo que você é um sonho, também sou um sonho.”

Para Lacan, Tchouang-Tseu é de fato uma borboleta, cujas asas são cravejadas de ocelos, uma borboleta que é um olhar. Mas, na verdade, o sonho de Lacan não seria este de “realizar”, de tornar palpável esse objeto inacessível do sonho ao acordar, um objeto que dê um limite ao saber, aos semblantes do mundo, um objeto de sonho ou o sonho de um objeto?

O trabalho do sonho não se termina aí com a deformação nem com o objeto. É como se isto não fosse suficiente para que seus conteúdos fossem deformados. É necessária uma elaboração secundária. O sonho tem buracos. Então, a elaboração secundária vai tapá-los. Ela torna o sonho compreensível, ou seja, comunicável e, portanto, comum. Existe assim uma função que visa construir uma fachada para o sonho, a torná-lo socializável, comunicável, apresentável e coerente. Essa fachada muitas vezes é atribuída à fantasia, ao sonho diurno, segundo Freud, ou ao devaneio, o qual ele coloca do lado imaginário21. Ainda de acordo com Freud, essas fantasias são construídas a partir de reminiscências da infância, como “muitos palácios romanos de estilo barroco ao custo das ruínas antigas: os destroços e as colunas de edifícios antigos serviram de material para a construção de palácios modernos”.

O sonho também permite expor, em ocorrência, elementos que indexam diretamente o gozo. É o que Freud chama de Überdeutlich, geralmente traduzido como “ultra claro” ou “anormalmente claro”.

O Über está presente em cada etapa. O sonho faz com que o irrepresentável seja traduzido pelo representável. Por exemplo, certos elementos do sonho conseguem representar outros através da transferência. A transferência é antes de tudo um instrumento do sonho – é o Übertragung. Diante disto, o caso Dora é ao mesmo tempo a análise de um sonho e de uma transferência. Além disso, a convicção do paciente deve passar por um nível superior, o do Überzeugung. É o que a construção do analista favorece quando é comunicada ao paciente. Esta convicção é também o que fomenta o caráter repetitivo do sonho. Para Lacan, o que desperta não é a realidade, mas a realidade faltosa, perdida. E o que é perdido é a realidade da própria causa, que escapa. Para Freud, no sonho do filho em chamas, é o pai quem está ausente na realidade do filho. A falha do pai observa-se no sono de um outro, de um velho, o que faz com que a realidade falte. No sonho, procure então a falha!

No vazio da realidade perdida

É neste vazio da realidade perdida no sonho que vem se alojar a realidade psíquica. Lacan nos indica para não interpretar o pai. Mas não é aί, neste sonho, a falha de Freud no seu desejo ligado à questão do pai? Freud, pai também dos analistas, torna-se aquele que nos fornece o pouco de realidade. Esta falta da realidade do pai escava – para Freud – um lugar. Neste lugar, pode-se alojar um desejo e uma outra realidade, a do inconsciente. Eis uma nova realidade no mundo, um novo sentido à questão do realismo, da realidade.

No lugar do que é perdido vem a repetição. Lacan em seu Seminário XI, fala do sonho da criança que queima como de uma homenagem à realidade perdida: “a realidade que não pode mais fazer-se a não ser se repetir indefinidamente, em um despertar indefinidamente jamais atingido”22.

O que de nós é o mais real

Para Lacan, o sonho de Freud nos indica um despertar ao real, um real que ultrapassa a questão do pai. A ausência de despertar à realidade do inconsciente, o despertar que se tornou impossível, torna-se mais real que aquele que nos dá a realidade do movimento do mundo. É mais que um estar despertado. É mais, para Lacan, que a realidade que o pai freudiano traz – aquela que passa pela castração. É também mais que aquilo que nos promete a “realidade” da ciência. Para Lacan, a realidade no sonho é um modo que nos dá acesso – pela sua falta– a outra coisa, aquilo que está em jogo do real no inconsciente.

E notem que a repetição se encarrega desta realidade nova. A repetição do sonho traumático restitui ao sujeito a marca de uma realidade impossível a conceber, aquela mesmo do acontecimento traumático, que agora se tornou uma “realidade psíquica”. E é lá onde o despertar é impossível que ele, em sua impossibilidade, nos permite em estar acordado para este algo de nós que é o mais real.

O sonho é um equívoco

O que se passa quando sonhamos? Borges, que se coloca a pergunta, evoca Shakespeare e avança que no sonho é possível “que sejamos alguém, alguém que é aquilo que Shakespeare chamou the thing I am, a coisa que sou, talvez que sejamos nós mesmos, ou a Divindade”. 23

Lacan nos indica, no “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, que o inconsciente sonha da verdade. Poderíamos pensar que ele sonha da verdade porque ele é freudiano, porque ele transfere sobre Freud. Para Lacan, esta verdade participa da miragem, do sonho, visto que “apenas a mentira é a ser alcançada”24. Aquela do sintoma, por exemplo, proton pseudos dizia Freud. O sonho não é o sintoma. Lacan, em seu Seminário II, nos diz que eles apenas têm em comum uma gramática. Ele adiciona: “Eles são tão diferentes como um poema épico em uma obra sobre a termodinâmica”.25 O que os diferencia é a duração, o tempo: “um sintoma é sempre inserido em um estado econômico global do sujeito, visto que o sonho é um estado localizado no tempo em condições extremamente particulares. O sonho é apenas uma parte da atividade do sujeito, visto que o sintoma se estende sobre vários campos”. De fato, o sintoma é a permanência de um modo de gozar, é a escolha de um parceiro, é o real quando ele é impossível a suportar, é aquilo que tece uma existência, é uma arte. Notemos que sonho e sintoma participam da escrita – mesmo se o sonho puxa para o lado da literatura, mais poema de transferência e o sintoma para o lado do matema. Ao final da cura esta distinção se apaga um pouco. O sonho pega a vez do sintoma, ele se conforma a este. O sonho é um instante que sonhamos eterno. E neste caso, como salienta Lacan, é o sonho de um despertar: “A ausência de tempo é uma coisa que sonhamos, é aquilo que chamamos eternidade e este sonho consiste em imaginar que despertamos”.26

Com Lacan, nosso sintoma é o real. O sonho então não é apenas um sonho? O real do sonho, esse buraco que queremos tamponar com a tapeçaria de nossas fantasias, pode também vir deslocar o sintoma? Freud nos indicou uma via imperial com o sonho, sem dúvida porque ele também é o pedaço do real de um equívoco. O sonho é um equívoco, visto que pela ausência de um verdadeiro despertar, ele falha também. Para a realidade, ele falha. Para o despertar, ele falha. O sonho é um pedaço de acaso que nos faz sinal, daquilo que falha e consegue nos fazer tocar um pedaço do real.

Aquilo que nos faz dizer que “é apenas um sonho” também é que gostaríamos de estabelecer um destino com nossos sonhos. Porém cada sonho, levado a sério, vem esburacar toda ideia deste destino. Logo, eles não nos encadeiam, mas nos dão uma saída. Dizer é apenas um sonho é enganar para não despertar. Sem dúvida porque o sonho “é uma obra de ficção”.27 O sonho não é sem ligação com nossas fantasias. É sua força, sua poesia e sua fraqueza face ao real. Lacan fez disto uma prova de verdade para os analistas: o teu sintoma te fez sair da miragem do verdadeiro, o teu inconsciente se pôs a sonhar do real ao invés do verdadeiro? Tu poderias demonstrá-lo?

Que despertar precisamos hoje?

Mas, me diria vocês, que despertar precisamos? Nossa época mostra que o fato de dormir coletivamente, terminaremos com os sonhos humanos ao acabar matando o planeta. O sintoma humano é a poluição: notamos a presença do homem pelo dejeto. Não é novo.

Aquilo que também mata o planeta é o pesadelo cientista – que pode seduzir- visto que ele nos faz acreditar que nos livrará do verdadeiro para colocar no lugar o verificado que exclui o real. O cientismo é um discurso que nos exige em não levar a sério nossos sonhos, logo bane Freud. Este discurso não concebeu que há Reais: há aquele da ciência, o da arte e da literatura e o da psicanálise, ou seja, o do sinthoma. O sintoma nos mostra “o artifício dos canais onde o gozo vem causar o que se lê como o mundo”. 28 A busca de Freud para fazer valer a realidade psíquica continua naquilo que se mostra hoje, nos indica Jacques-Alain Miller: “O acontecimento de corpo que é o gozo aparece como a verdadeira causa da realidade psíquica”. 29

Tomar a medida desse nó sempre triplo do real talvez nos permitiria em não rejeitar ao mar e além de nossas fronteiras os sonhadores, todos os dreamers, todos aqueles que querem uma vida melhor. A psicanálise, com os sonhos, nos mostra buracos, falhas onde alojar um possível. Como nos aponte J-A. Miller, Lacan – partindo do ser – soube capturar o que faz buraco no sonho. Joyce também nos levava aί, a sua maneira, porque Finnegans Wake é também um sonho que gira em torno do buraco, buracos que jaz em uma fivela da lalangue. As fantasias contemporâneas, cuja ciência constitui a maior parte das tropas quando ela é cientista, estão lá para tamponar os buracos. Buracos que a literatura – que necessita o sonho – e a psicanálise, que depois desta, continuam a cavar. As fantasias cientistas nos prometem o transhumanismo, que esconde mal o que continua sendo um transexualismo verdadeiramente mais pansexual que Freud, e visa assegurar um mais-de-gozar que nos cobre desde já a perda de gozo que seria preciso.

O trabalho do sonho é manter o buraco aberto, manter o traço do Ent-stellung, ou a ex-sistência de um il y a (Há). É manter nada menos que o traço distorcido da ex-sistência humana, de seu exílio de origem; uma ex-sistência que não é humana sem os sonhos, sem o inconsciente.

No final do século XX acreditamos sair da subordinação ou do assujeitamento ao pai, à lei. Evitamos então o pai, acreditando escapar do pior. Mas se não sonharmos mais juntos estaremos então no pior que o assujeitamento, na lealdade muda ao cientismo, ao capitalismo liberal, às “democracias iliberais 30”, às burocracias sanitárias.

A democracia é a condição da psicanálise, mas o inconsciente e seus sonhadores é a condição da democracia.

Tradução: Juliane Casarin, Luciana Castilho, Nayahra Reis

Revisão Patrick Almeida

1 Cf. carta citada por Marinelli L. & Mayer A., Rêver avec Freud, Aubier, 2009, p. 179-180.

2 Freud, S, A interpretação dos sonhos, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, A Interpretação dos Sonhos (I) (1900), Vol. IV, Imago: Rio de Janeiro, p. 140, nota 2.

3 Cf. Bernays, E., “Correspondance avec Freud”, trad. S. Aumercier, Le coq-héron, n° 194, setembro 2008, disponivel on-line.

4 Freud, S., “Novas conferências introdutórias à psicanálise”, Em Obras Completas, O mal estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936), Vol. 18, Tradução de Paulo César de Souza, Companhia das Letras: São Paulo, 2010, p. 94.

5 Baudini S. & Naparstek F., “Le rêve. Son interprétation et son usage dans la cure lacanienne”, apresentação do XII° Congresso de l’AMP, disponível no site do congresso https://congresoamp2020.com

6 Freud, S., “Novas conferências introdutórias à psicanálise”, op. cit., p. 96.

7  Ibid., p. 98.

8  Cf. ibid., p. 104.

9 Cf. Lacan, J., “L’ombilic du rêve est un trou. Jacques Lacan répond à une question de Marcel Ritter”, Em La cause du désir, n° 102, junho de 2019, p. 35-36.

10  Freud, S., A interpretação dos sonhos, op. cit., p. 363.

11  Ibid., p. 521-522.

12 Lacan J., « La direction de la cure et les principes de son pouvoir », Écrits, Paris, Seuil, coll. Champ Freudien, 1966, p. 620.

13 Cf. ibid., p. 629.

14 Lacan J., « L’ombilic du rêve est un trou… », op. cit., p. 37.

15 Freud S., L’Interprétation des rêves, op. cit., p. 4.

16 Lacan J., Le Séminaire, livre XVI, D’un Autre à l’autre, texte établi par J.-A. Miller, Paris, Seuil, coll. Champ Freudien, 2006, p. 198.

17 Lacan J., « Ouverture de la Section clinique », Ornicar ?, n° 9, avril 1977, p. 10.

18 Lacan J., Le Séminaire, livre XIV, « La logique du fantasme », séance du 18 janvier 1967, inédit.

19 Borges J. L., Conférences, Paris, Gallimard, coll. Folio essais, 1985, p. 43 & 44.

20 Tchouang-Tseu, Le Rêve du papillon, Paris, Albin Michel, 1994, p. 34 & 33.

21 Cf. Freud S., L’Interprétation des rêves, op. cit., p. 419.

22 Lacan J., « La direction de la cure et les principes de son pouvoir », Écrits, Paris, Seuil, coll. Champ Freudien, 1966, p. 620.

23 Borges, J., Conférences, op.cit.pag.38.

24 Lacan J., « Préface à l’édition anglaise du Séminaire XI », Autres écrits, Paris, Seuil, coll. Champ Freudien, 2001, p. 572.

25 Lacan J., Le Séminaire, livre II, Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, Paris, Seuil, coll. Champ Freudien, 1978, p. 150.

26 Lacan J., « Une pratique de bavardage », texte établi par J.-A. Miller, Ornicar ?, n° 19, janvier 1979, p. 5.

27 Borges J. L., Conférences, op. cit., p.36.

28 Lacan J., « Postface au Séminaire XI », Autres écrits, op. cit., p. 507.

29 Miller J.-A., « L’être, c’est le désir », disponible sur le site du XIIe congrès de l’AMP congresoamp2020.com

30 Nota do tradutor: Na língua francesa a letra i diante de uma palavra indica uma negação. Poder-se-ia traduzir “démocraties illibérales” por democracias não liberais, em termos jurídicos, mas optamos por manter a palavra no seu original.